Tomás de Aquino

20/09/2012 00:37

 

<< Imagem:- Reunião de acadêmicos na Universidade  de Paris, mostrada em gravura medieval:  discussões revolucionariam a ciência
 
Doutor da Igreja inverteu prioridades no pensamento medieval, dando ênfase ao mundo real e ao aprendizado pelo raciocínio
 
Depois de oito séculos marcados por uma filosofia voltada para a resignação, a intuição e a revelação divina, a Idade Média cristã chegou a um ponto de tensão ideológica que levou à inversão quase total desses princípios. O personagem-chave da reviravolta foi São Tomás de Aquino (1224/5-1274), o grande nome da filosofia escolástica (leia quadro abaixo), cujo pensamento privilegiou a atividade, a razão e a vontade humana.
 
Numa época em que a Igreja ainda buscava em Santo Agostinho (354-430) e seus seguidores grande parte da sustentação doutrinária, Tomás de Aquino formulou um amplo sistema filosófico que conciliava a fé cristã com o pensamento do grego Aristóteles (384-322 a. C.) - algo que parecia impossível, até herético, para boa parte dos teólogos da época. Não se tratava apenas de adotar princípios opostos aos dos agostinianos - que se inspiravam no idealismo de Platão (427-347 a. C.) e não no realismo aristotélico - mas de trazer para dentro da Igreja um pensador que não concebia um Deus criador nem a vida após a morte.
 
A porção mais influente da obra de Aristóteles havia desaparecido das bibliotecas da Europa, embora tivesse sido preservada no Oriente Médio. Ela só começou a reaparecer no século 12, principalmente por meio de comentadores árabes, conquistando grande repercussão nos círculos intelectuais. As idéias de Aristóteles respondiam melhor aos novos tempos do que o neoplatonismo. Vivia-se o período final da Idade Média e a transição de uma sociedade agrária para um modo de produção mais orientado para as cidades e a atividade comercial. Avanços tecnológicos, principalmente relacionados aos instrumentos de trabalho, começavam a influir na vida das pessoas comuns e os trabalhadores urbanos se organizavam em corporações (guildas).
 
Valorização da matéria
 
Aristóteles, em sua obra, punha a razão e a investigação intelectual em primeiro plano. A realidade material era considerada a fonte primordial de conhecimento científico e mesmo de satisfação pessoal. "Tomás afirma que há no ser humano uma alma única, intrinsecamente unida ao corpo", diz Luiz Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. "Era uma idéia revolucionária para uma época marcada pelo espiritualismo de Santo Agostinho, que trazia consigo certo desprezo pela matéria."
 
Tomás de Aquino realizou um trabalho monumental numa vida relativamente curta. Sua obra mais importante, apesar de não concluída, é a Suma Teológica, na qual revê a teologia cristã sob a nova ótica, seguindo o princípio aristotélico de que cabe à razão ordenar e classificar o mundo para entendê-lo. Eis o princípio operacional do tomismo, como é chamada a filosofia inaugurada por Tomás de Aquino.
 
A relação entre razão e fé está no centro dos interesses do filósofo. Para ele, embora esteja subordinada à fé, a razão funciona por si mesma, segundo as próprias leis. Ou seja, o conhecimento não depende da fé nem da presença de uma verdade divina no interior do indivíduo, mas é um instrumento para se aproximar de Deus. "Segundo Tomás, a inteligência é uma potência espiritual", afirma Lauand.
 
Essência a desenvolver
 
De acordo com o filósofo, há dois tipos de conhecimento: o sensível, captado pelos sentidos, e o intelectivo, que se alcança pela razão. Pelo primeiro tipo, só se pode conhecer a realidade com a qual se tem contato direto. Pelo segundo, pode-se abstrair, agrupar, fazer relações e, finalmente, alcançar a essência das coisas, que é o objeto da ciência. O processo de abstração que vai da realidade concreta até a essência universal das coisas é um exemplo da dualidade entre ato e potência, princípio fundamental tanto para Aristóteles quanto para a filosofia escolástica.
 
Para extrair das coisas sua essência, é necessário transformar em ato algo que elas têm em potência. Disso se encarrega o que Tomás de Aquino chama de inteligência ativa - em complementação a uma inteligência passiva, com a qual cada um pode formar os próprios conceitos. A idéia, transportada para a educação, introduz um princípio pedagógico moderno e revolucionário para seu tempo: o de que o conhecimento é construído pelo estudante e não simplesmente transmitido pelo professor. "Tomás nos lega uma filosofia cuja característica principal é uma abertura para o conhecimento e para o aluno", diz Lauand.
 
Como o filósofo vê em todo ser a potência e o ato (apenas Deus está acima da dicotomia, sendo "ato puro"), a noção de transformação por meio do conhecimento é fundamental em sua teoria. Cada ser humano, segundo ele, tem uma essência particular, à espera de ser desenvolvida, e os instrumentos fundamentais para isso são a razão e a prudência - esse, para Tomás de Aquino, era o caminho da felicidade e também da conduta eticamente correta.
 
"A direção da vida é competência da pessoa e Tomás mostra que não há receitas para agir bem, porque a prudência versa sobre atos situados no aqui e agora", declara Lauand.
 
Cidades ganham importância e novas escolas
 
Com sua teoria do conhecimento, que "convoca" a vontade e a iniciativa de cada um na direção do aperfeiçoamento, São Tomás de Aquino legou à educação sobretudo a idéia de autodisciplina. Foi essa a marca do ensino cristão, que alcançaria sua máxima eficiência, em termos de doutrinação, com os jesuítas, já no século 16. Embora a obra de Tomás de Aquino apontasse para o auto-aprendizado, a idéia não foi abraçada pelas rígidas hierarquias da Igreja Católica. No período em que o filósofo viveu, a religião seguia sendo a principal fonte de instrução, como em toda a Idade Média. Sobreviviam as escolas monásticas em mosteiros afastados da cidade, que inicialmente visavam a formação de monges, mas depois também de leigos das classes proprietárias. Com o surgimento da economia mercantil nas cidades, aparecem também as escolas episcopais, urbanas, destinadas a formar o clero secular (aquele que participava da vida social) e leigos. A palavra latina schola ganhou, nessa época, o significado de centro de encontro e de estudos. Vem daí o adjetivo escolástico, relativo à filosofia da época.
 
Biografia
 
Tomás de Aquino nasceu em 1224 ou 1225 perto da cidade de Aquino, no reino da Sicília (hoje parte da Itália). Sua família era proprietária de um pequeno feudo e ligada politicamente ao imperador Frederico II. Tomás foi encaminhado ainda criança para o monastério de Monte Cassino, com o objetivo de seguir carreira religiosa. Nove anos depois, devido a um conflito entre o imperador e o papa, ele foi tirado do monastério e enviado para a Universidade de Nápoles, onde entrou em contato com a obra de Aristóteles. Pouco depois, decidiu juntar-se à ordem mendicante dos frades dominicanos. Quando seus superiores o enviaram para a Universidade de Paris, os pais do noviço chegaram a seqüestrá-lo no caminho. Apesar de ter ficado um ano proibido de sair da propriedade da família, a vontade de Tomás prevaleceu e ele se mudou para Paris. O resto de sua vida se resumiu à atividade acadêmica, com uma interrupção de alguns anos para trabalhar como conselheiro da Cúria Papal, em Roma. Já perto do fim da vida, Tomás voltou à Universidade de Nápoles, para dar aula. Sua passagem pela Universidade de Paris foi marcada por polêmicas com outros pensadores. Morreu em 1274, na abadia de Fossanova (hoje centro da Itália). Foi canonizado em 1323 e nomeado "doutor da Igreja" em 1567.
 
Período exige abertura da igreja para o mundo
Reunião de acadêmicos na Universidade de Paris, mostrada em gravura medieval: discussões revolucionariam a ciência. Foto: Leonard de Selva/Corbis /Stock Photos
Reunião de acadêmicos na Universidade  de Paris, mostrada em gravura medieval:  discussões revolucionariam a ciência.
 
Tomás de Aquino é uma figura simbólica de seu tempo na medida em que representou como ninguém a tensão entre a tradição cristã medieval e a cultura que se formava no interior de uma nova sociedade. Uma das respostas da Igreja a uma necessidade crescente de abertura para o mundo real foi a criação das ordens mendicantes, que, sem bens, vivem da caridade, ao mesmo tempo que se voltam para o socorro dos doentes e miseráveis. As duas ordens mendicantes surgidas na época foram a dos franciscanos, fundada por São Francisco de Assis (1181/2-1226), e a dos dominicanos, por São Domingos de Gusmão (1170-1221). Tomás de Aquino se filiou aos dominicanos. Outra característica dessa fase histórica foi o nascimento das universidades, que se tornaram o centro das discussões teológicofilosóficas, em particular na Universidade de Paris, onde o pensador estudou e lecionou. O ensino nessas instituições se assentava na divisão de disciplinas entre trívio e quadrívio, sistema que remonta à Antigüidade clássica. O quadrívio, que corresponderia às atuais ciências exatas, agrupava aritmética, geometria, astronomia e música, e o trívio, aparentado à idéia de ciências humanas, reunia a gramática, a retórica e a dialética. As discussões do período, no entanto, em breve levariam a um questionamento dos conceitos científicos vigentes.
 
https://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/tomas-aquino-428112.shtml?page=1
 
A Teologia Natural de Tomás de Aquino
 
O mais famoso contributo de Tomás de Aquino para a filosofia da religião são as Cinco Vias ou provas da existência de Deus a que se refere na sua Summa Theologiae. O movimento no mundo, argumenta Tomás de Aquino, só é explicável se existir um primeiro motor imóvel; a série de causas eficientes no mundo devem conduzir a uma causa sem causa; os seres contingentes e corruptíveis devem depender de um ser necessário independente e incorruptível; os diversos graus de realidade e bondade do mundo devem ser aproximações a um máximo de realidade e bondade subsistente; a teleologia normal de agentes não conscientes no universo implica a existência de um Orientador universal inteligente.
 
Anthony Kenny
 
Algumas das Cinco Vias parecem sustentar-se num tipo antiquado de física, e nenhuma delas foi até hoje reafirmada de um modo totalmente liberto de falácia. Recentemente, o interesse filosófico voltou-se para o longo e complicado argumento a favor da existência de Deus apresentado na Summa contra Gentiles, e será interessante descobrir se pode ser reafirmado de modo a persuadir os não-crentes.
 
            A parte mais valiosa da filosofia da religião de Tomás de Aquino é a sua análise dos atributos tradicionais de Deus, como a eternidade, a omnipotência, a omnisciência e a benevolência. Tomás de Aquino esforça-se ao máximo na exposição e resolução de muitos dos problemas filosóficos levantados por esses atributos. No quadro mais vasto da filosofia da religião, o contributo mais influente de Tomás de Aquino foi a sua explicação da relação entre a fé e a razão e a sua defesa da independência da filosofia relativamente à teologia. Segundo Tomás de Aquino, a fé é uma convicção tão inabalável como o conhecimento, mas, ao contrário deste, não se baseia na visão racional; depende, sim, da aceitação de algo que se apresenta como uma revelação divina. 
 
As conclusões da fé não podem contradizer as da filosofia, mas não são derivadas da argumentação filosófica, nem constituem a base necessária da mesma. A fé é, contudo, um estado de espírito razoável e virtuoso porque a razão pode demonstrar a justeza da aceitação da revelação divina, ainda que não possa demonstrar a verdade daquilo que é revelado.
 
            Para Tomás de Aquino é essencial que tenhamos em mente a distinção, hoje familiar aos filósofos, entre teologia natural e teologia revelada. Suponhamos que um filósofo apresenta um argumento a favor de uma conclusão teológica. Podemos perguntar se qualquer uma das premissas do argumento afirmam registar ou não revelações divinas específicas. São algumas dessas premissas avançadas porque ocorrem numa escritura sagrada ou porque foram alegadamente reveladas numa visão privada? Ou, pelo contrário, são todas as premissas apresentadas como factos da observação ou como verdades directas da razão? No primeiro caso, estamos a lidar com teologia revelada; no segundo, com teologia natural. A teologia natural faz parte da filosofia; o mesmo não acontece com a teologia revelada, apesar de os teólogos poderem usar capacidades filosóficas ao proc
urarem aprofundar a sua compreensão dos textos sagrados.
 
            Tomás de Aquino pensa que existem algumas verdades teológicas que podem ser alcançadas pelo simples uso da ra
zão: por exemplo, a existência de Deus. Outras podem ser apreendidas ou pela razão, ou pela fé; por exemplo, a providência divina e a bondade. Outras só podem ser conhecidas por revelação, como a Trindade das pessoas de Deus e a Incarnação de Deus em Cristo. Entre as que só podem conhecer-se por revelação, pensava Tomás de Aquino que se encontrava a verdade de que o mundo criado tivera um princípio. 
 
O seu tratamento filosófico da questão possui uma sofisticação nunca ultrapassada, nem antes nem depois; por meio de um paciente exame, Tomás de Aquino refutou não apenas os argumentos aristotélicos a favor da eternidade do mundo, como também os argumentos avançados por muçulmanos e cristãos para demonstrar que o mundo fora criado no tempo. Nenhuma das proposições, afirmou ele, podiam ser demonstradas por meio da razão, e a filosofia deve ser agnóstica quanto a esse assunto; devemos acreditar que a criação teve lugar no tempo apenas porque o livro do Génesis no-lo diz.
                                                     
História concisa da filosofia ocidental, Temas & Debates, p.187      
https://rolandoa.blogs.sapo.pt/51655.html
imagem acima: Instituto Teológico São Tomás de Aquino