Jô Soares nunca escondeu sua paixão pelo Rio de Janeiro. Morando em São Paulo, onde grava seu programa de TV diário, o humorista e escritor guarda boas histórias e recordações do tempo em que morou e trabalhou na capital fluminense.
Talvez por isso dois de seus livros, O Xangô de Baker Street, no qual Sherlock Holmes vem ao Rio imperial investigar o desaparecimento de um valioso violino, e o mais recente As Esganadas, sobre a morte misteriosa de várias mulheres obesas no fim dos anos 30, funcionem como um verdadeiro guia cultural e histórico do Rio de Janeiro.
Uma rua famosa
Tanto em O Xangô de Baker Street quanto em seu mais recente romance, que se passa em 1938, ano em que Jô nasceu, uma rua em especial não passa em branco: a rua do Ouvidor, no centro do Rio.
<< Foto antiga mostra a rua do Ouvidor
Sobre ela já escreveram Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida, José França Júnior e Joaquim Manuel de Macedo, que lhe dedicou um livro, Memórias da Rua do Ouvidor.
Conhecida pela sua elegância e por reunir alguns dos principais pontos de encontro da intelectualidade carioca, a rua teve vários outros nomes até 1775.
Lá estavam sedes de diversos jornais, editoras e empresas tradicionais. No entanto, a rua perdeu seu destaque com a inauguração da Avenida Rio Branco, em 1900. Hoje, ela concentra bares e prédios antigos que guardam histórias bem particulares da era imperial.
Um giro pelo centro histórico do Rio
Do Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, que recebeu a lendária apresentação da atriz francesa Sarah Bernhardt no século 19, ao Teatro Santana, passando pelo Teatro Príncipe Imperial, fundado em 1881 e famoso pelas peças do teatro de revista, e pelas competições de cavalos no hipódromo Derby Club, em São Cristóvão, e no Jockey Club, com a nata da sociedade carioca.
Esse seria sem dúvida um belo passeio pela vida cultural e social do Rio imperial, indicado nas páginas de O Xangô. E hoje, como seria esse passeio pelo Rio?

Área do Derby Clube em 1932, a futura sede do complexo esportivo do Maracanã
<< Postal mostra o Teatro João Caetano em 1930
Dos três teatros, todos localizados no mesmo local, antiga Praça da Constituição e hoje a Praça Tiradentes, apenas o terceiro não existe mais.
O primeiro, que chegou a se chamar Real Theatro de São João, passou por reformas e, desde 1930, se chama Teatro João Caetano, a sala de espetáculos mais antiga do Rio, enquanto o Teatro Santana se transformou no Teatro Municipal Carlos Gomes. Já o Derby Clube deu espaço ao complexo esportivo do Maracanã.
Ali, nas proximidades da Praça da Constituição, também estava localizado o Museu Nacional e Imperial, hoje o Paço Imperial, centro cultural que abriga exposições e uma sala de cinema.
Em O Xangô, Jô Soares destaca a famosa coleção de múmias do local, “autênticas dos tempos dos faraós”, em um trecho cheio de ironia.
A região do centro histórico do Rio volta a aparecer em As Esganadas, com a história se desenrolando em ruas como a Sete de Setembro e a rua da Carioca, no Largo da Carioca, conhecida pelos antigos sobrados e pelo trânsito dos bondes.
Lá também é o endereço da centenária Confeitaria Colombo, onde começa a trama.
Símbolo da Belle Époque tropical, a confeitaria foi inaugurada em 1884 e virou ponto de encontro da alta sociedade carioca do início do século 20.
Entre chás, casadinhos e pastéis de Belém, era comum a presença de políticos bigodudos, como Rui Barbosa, artistas como o compositor Villa Lobos e imortais da ABL, como Olavo Bilac, que tinha uma mesa reservada para ele.
Hoje, o local é patrimônio histórico tombado e ainda mantém a decoração original, como os espelhos belgas, móveis em jacarandá e bancadas de mármore.
Para fechar o itinerário pelo centro, temos a rua Primeiro de Março, antiga rua da Direita, a mais importante do Rio no século 19, com casas de governadores e ponto badalado por mercadores de escravos.
É lá que estão o Café Globo e o Beco dos Barbeiros, cenários de As Esganadas; o beco é um dos últimos vestígios das vielas dos tempos coloniais, assim com a rua da Assembleia, pela qual Tiradentes caminhou enquanto esteve preso na Cadeia Velha e que também ficou conhecida como a rua dos “artigos para vestir”.
<< Postal mostra a Rua da Assembleia
Orgulho do imperador
“Com mais de 100.000 volumes distribuídos por 42 salas, a Biblioteca Nacional era um dos orgulhos do imperador”. Assim Jô descreve uma das principais atrações culturais do Rio, a Biblioteca Nacional.
Na história, o local serve de esconderijo para um “fugitivo” que tentava, em vão, despistar o detetive Sherlock em O Xangô.
Com 200 anos, a construção da biblioteca foi iniciada com a vinda da família real para o Brasil. Se antes já era motivo de orgulho do imperador, o que será que D. Pedro II diria ao saber que hoje o local possui um acervo de mais de 8 milhões de obras, o oitavo maior acervo da América Latina?
<< Vista da Biblioteca Nacional, no centro do Rio de Janeiro
Cemitério pop
O cemitério mais pop do mundo ainda é o Père Lachaise, em Paris, com as sepulturas de personalidades como Jim Morrison, Balzac, Oscar Wilde e Allan Kardec.
Mas, no Brasil, esse título pertence ao São João Batista. Cenário de As Esganadas – na história ele está localizado perto da funerária fictícia Estige, que pertence a Caronte, o vilão do livro –, na vida real o local é conhecido como “cemitério das estrelas” por abrigar túmulos como os de Tom Jobim, Luís Carlos Prestes, Santos Dumont, Janete Clair e de nove ex-presidentes, entre eles, Arthur Bernardes e Costa e Silva.
Programa natureba
Os jardins da Quinta da Boa Vista também aparecem em As Esganadas. Nos anos 30, o local era o pátio do Palácio Imperial de São Cristóvão e hoje, embora não esteja entre os principais roteiros da cidade, é um dos melhores lugares da cidade para aproveitar seus belos jardins e o sossego da natureza. Por lá também estão o Museu Nacional de História Natural e o zoológico da cidade.
A boemia e a gastronomia
Dicas de gastronomia e da vida boêmia no Rio também são o forte dos livros de Jô Soares. Além da famosa confeitaria Colombo, há o centenário Café Lamas, hoje no Flamengo.
O local – que já foi citado até em músicas de Alcione, como “Rio Bonito” – era reduto da boemia carioca, recebendo comunistas, artistas, jornalistas, políticos e intelectuais.
Quem visitar o local fará uma volta ao passado ao perceber vestígios de presenças ilustres como Ruy Barbosa, Machado de Assis, Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Emilio de Meneses e João do Rio.
Políticos como Oswaldo Aranha, Teotônio Vilela, Getúlio Vargas e Epitácio Pessoa também frequentaram o café. Diz a história que D. Pedro II adorava a canja do Lamas.
Além dos locais que ainda estão abertos, Jô relembra outros locais que deixaram seu nome na história cultural do Rio.
É o caso do Café Nice, localizado no nº 174 da avenida Rio Branco. Fundado em 1928, o Nice funcionou durante 26 anos. Viveu seu auge na chamada fase de ouro da MPB, entre 1928 e 1946. Compositores e bambas como Ari Barroso, Mario Lago, Cartola e Noel Rosa eram alguns dos clientes que batiam cartão no local.
Da próxima vez que for ao Rio, você já sabe: se não tiver um guia nas mãos, é simples: basta seguir os passos dos detetives Sherlock Holmes, Mello Noronha e Tobias Esteves para se aventurar em locais que fizeram história na cidade.
Por Andréia Silva
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