Em 1976, a locutora e apresentadora de televisão Íris Lettieri, então conhecida mais por sua aparência, foi convidada pela Infraero para assumir uma função de vital importância: anunciar os voos que chegavam e partiam do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. No primeiro dia de trabalho, ela entrou num estúdio cheio de executivos da empresa e leu uma mesma frase com entonações diferentes, para que eles escolhessem a melhor.
Numa das opções, repetiu a frase de forma suave e lenta. Espaçava algumas sílabas e dava à voz um timbre que alternava entre o grave e o sensual. Algo como um misterioso chamado celeste. A aprovação foi unânime. A locução foi considerada perfeita por ter clareza e doçura suficientes para acalmar os passageiros – muitos deles ainda com medo de voar, num período em que a aviação comercial se difundia no país. Nascia a “voz do aeroporto”, encarnada por Íris Lettieri e resgatada, na semana passada, de uma aposentadoria compulsória pela prefeitura do Rio de Janeiro.
A voz rouca e sensual que trazia informações sobre voos do Galeão foi sucesso logo que entrou em cena. Depois do Rio, Íris foi contratada pelos aeroportos de Manaus, Foz do Iguaçu, Belo Horizonte e São Paulo. Como também foi ouvida por muitos viajantes estrangeiros, também em inglês, sua fama correu o mundo. Ela foi tema de reportagens na revista Time, no jornal Chicago Tribune e na rede CNN, em que foi chamada de “a voz mais bonita do Brasil”. Um trecho de sua locução entrou na música “Crack Hitler” do grupo americano Faith No More – que Íris processou por ter usado a gravação sem sua autorização. O ator fortão Jean-Claude Van Damme já disse que a coisa que mais lhe chamou a atenção no Brasil foi “aquela voz no aeroporto”. Com o tempo, o famoso produto sonoro transpôs as barreiras da aviação. Íris foi chamada para fazer locução de espera telefônica, comerciais de rádio e festas de debutantes. Uma noiva que se casaria com um piloto a contratou para anunciar aos convidados o salão para onde deveriam se dirigir. A voz de Íris se tornara um símbolo da aviação civil no país, e ela levava uma vida confortável. “Nunca cobrei baratinho, porque minha voz virou uma marca.”
Nos últimos anos, a situação mudou. O primeiro aeroporto a desistir do contrato com Íris foi o de Belo Horizonte. Depois Manaus, Foz do Iguaçu e São Paulo. Ela acredita que a má gestão e a privatização dos aeroportos tenham pesado nas decisões, mas que o principal fator tenha sido conjuntural. Com mais gente acostumada ao funcionamento dos aeroportos e serviços de atendimento aos passageiros mais eficazes, uma voz que anunciasse todos os voos tornou-se redundante. “É uma tendência mundial. Os grandes aeroportos do mundo não têm mais anunciadores de voo”, diz Íris. A própria natureza do trabalho mudou. Antes, Íris gravava frases inteiras em fitas de rolo, que um funcionário tocava no aparelho de som. Recentemente, ela apenas gravava palavras e números isoladamente – poderiam estar no meio ou no final de uma frase, alterando a entonação da última sílaba –, armazenados na memória de um computador. Um funcionário digitava o texto desejado, e a máquina formava a frase que os passageiros ouviam no salão.
No final do ano passado, a Infraero rescindiu o contrato de Íris com o Aeroporto Internacional do Rio, depois de 37 anos de serviços prestados. A justificativa foi que o terminal fora privatizado e, a partir de agosto deste ano, seria operado por um consórcio liderado pela Odebrecht. Os contratos até lá foram reavaliados, e alguns rescindidos. “Era algo que eu já esperava”, diz Íris. A “voz do aeroporto” cumpriu seus últimos serviços e estava fadada a se tornar parte da memória afetiva dos antigos passageiros, assim como os talheres de prata nas refeições a bordo.
A restituição de Íris a seu posto foi uma surpresa. O prefeito Eduardo Paes diz considerar a voz da locutora um patrimônio do Rio de Janeiro e decidiu tomar providências. Ligou para a Odebrecht e, na semana passada, conseguiu que Íris fosse recontratada assim que o novo consórcio assumir a operação. Paes ainda ordenou que o Instituto de Patrimônio Cultural do Rio, ligado à prefeitura, registrasse a “voz do aeroporto” como patrimônio imaterial da cidade – como a bossa nova, a torcida do Flamengo e a obra de Pixinguinha. “Aquela voz é imperdível. Você ouve aquele ‘bing-bong’ e lá vem ela, suave e quase sensual, com a cara da cidade. É um patrimônio do Rio de Janeiro e tem de ser tombado”, diz Eduardo Paes. Íris, hoje com 72 anos, emocionou-se ao saber da notícia e mostra-se animada com o retorno. Sua voz continua a mesma, pronta para encantar os passageiros que passarem pela cidade da voz maravilhosa.
>> Íris Lettieri dá um recado especial a você, leitor de ÉPOCA